Fantasia branca – Revista Germina

O vestido apertado na cintura a fazia pensar no sofrimento das mulheres de antigamente. Imagina estar sempre apertada em uma roupa assim? Apertada e quente. Ainda por cima, viviam numa época em que nem existia ar condicionado. Felizardas as mulheres de hoje, que exibem a barriga em shortinhos de cintura baixa e os ombros em blusas de alcinha. Só são sacrificadas dentro dessas roupas de época uma vez na vida, quando muito.

Luana ainda não acreditava que realmente estava vivendo aquilo. Era como se fosse acordar de repente no quarto rosa, com seis anos de idade, abraçar sua boneca e voltar a dormir. Vai ver era tudo sonho de criança que fica imaginando o que vai ser quando crescer. Hoje o sonho era aquele, amanhã sonharia que era astronauta, no dia seguinte, que era trapezista de um circo. Claro que era isso. E Luana, boba, tinha acreditado que era verdade só porque seu pé estava doendo naquele salto alto. Se bem que seus sonhos não costumavam ser tão ricos em detalhes, muito menos em detalhes inconvenientes. Sonho é bom, gostoso, o pé só dói em pesadelo. Mas, se fosse pesadelo, ela não estaria feliz. Pelo contrário, estaria tentando acordar de qualquer jeito e, quando conseguisse, descobriria que ainda era um pesadelo e acordaria de novo, de novo, de novo… Também não era um daqueles pesadelos em que ela saía de casa sem roupa e todo o mundo ficava olhando. Não, Luana estava mais vestida do que nunca. Cinco camadas embaixo da saia para deixá-la volumosa.

O pai conversava com o motorista para disfarçar o nervosismo. Luana ainda tentava se reconhecer dentro daquela indumentária estranha. Antes de entrar no carro, se olhara no espelho e tivera a sensação de que não era ela que ia se casar, era aquela moça fantasiada que estava do outro lado do espelho. Sim, estava fantasiada como no Carnaval, então as regras também deveriam ser as mesmas. Não levariam a sério o que ela fizesse naqueles trajes, só voltaria à realidade na quarta-feira de cinzas. Não precisava se preocupar naqueles quatro dias de absolvição prévia. Só que não era assim, não era Carnaval. Não havia confete, e sim arroz. Dessa vez, tinha se fantasiado para assinar um contrato que mudaria tudo. Como se uma folha de papel, por mais carimbos estampados que tivesse, pudesse determinar que dali para frente ela seria mais feliz.

Feliz de quem consegue ter certeza desse futuro cor-de-rosa. Independente do papel, do padre e da aliança, Luana não sabia se seria mais feliz depois de casar. Não queria começar a participar de reuniões de condomínio para ouvir reclamações de quem acha que os maiores problemas do mundo se encontram em sua portaria. Também não se imaginava conversando com as amigas sobre como tirar manchas das roupas. Ou pechinchando preços no supermercado. Ou brigando com o marido por motivos ridículos, como uma toalha molhada em cima da cama. Não queria correr o risco de cair numa armadilha e perceber que todos os seus dias tinham ficado iguais. Já até imaginava a vida de casada. Todos os dias ela daria boa noite ao porteiro quando chegasse do trabalho, às vezes olharia o escaninho, subiria no elevador procurando a chave de casa na bolsa, entraria pela sala, colocaria a bolsa na mesa de jantar, daria um estalinho no marido que estaria vendo televisão, ligaria o gás, tomaria banho… Sempre a mesma coisa. Luana não queria se integrar a essa rotina, como a poeira que se acumula entre as pedras portuguesas e acaba por fazer parte do calçamento.

Por que ia casar se não acreditava na felicidade dos casais retratados nos filmes de Hollywood? Por que nenhum conto de fada fala sobre a vida da princesa e do príncipe encantado depois de casados? Seria por não haver nada de encantador a ser dito? Então, Luana também queria parar por ali. “E viveram felizes para sempre” e apertar pause. Não estava interessada na continuação da história. Queria ouvir tudo de novo, até chegar nessa parte pela segunda vez, terceira, quarta, até ela pegar no sono.

Daqui a pouco, todos os olhos virariam em sua direção para vê-la andar no tapete vermelho. Mais ou menos como no pesadelo em que ela estava pelada. Alguém choraria, outra falaria sobre seu vestido, ou sobre o penteado, ou sobre qualquer outra parte da fantasia que não representasse Luana como ela é. Elogiariam a maquiagem que tinha deixado sua cara branca e sumido com o queimado de sol que ela tanto gostava. Uma pessoa diria que ela estava mais magra, sem saber que sua cintura estava sendo esmagada pelo vestido. Era necessário cumprir esses rituais? Talvez sim, por causa dos presentes que os convidados haviam comprado como se fossem ingressos para aquele espetáculo. Talvez não. Não faria uma promessa cuja cláusula de término era “até que a morte os separe” sem saber sequer quando seria o evento da morte. Isso seria dar um tiro no pé.

Abriram a porta da Igreja e Luana tirou o vestido ante a multidão atônita. Caminhou sozinha pelo tapete vermelho sob a luz do holofote do fotógrafo, de véu, grinalda e salto alto branco. Todos a olhavam, como no pesadelo que conhecia tão bem. Só que agora estava feliz. Feliz por ter se libertado daquela fantasia. Por finalmente ser vista como era. Feliz por aguardar a criança que avisaria que o rei estava nu.

Disponível em: https://www.germinaliteratura.com.br/marcia_do_valle.htm

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *