Na primeira vez que minha filha disse que queria se matar, me pareceu algo tão estapafúrdio quanto querer morar na Lua ou ter um dinossauro como animal de estimação. Repreendi, porque não se deve brincar com coisa séria, e não passou pela minha cabeça a possibilidade daquela fala não ser uma brincadeira, um exagero ou uma mistura das duas coisas.
Na segunda vez que minha filha falou que queria se matar, ela afirmou que seria naquela mesma noite, após todos (leia-se, eu) dormirem. Apesar de já estar em tratamento, ela tinha um detalhado plano a ser executado. Percebi que aquela noite me marcaria para sempre. Mas fui otimista e imaginei que marcaria sendo a pior noite da minha vida. Não imaginei que era somente o marco do início de tudo o que estava por vir, nem que aconteceriam noites piores, ou tão péssimas quanto essa.
Nas vezes seguintes, minha filha efetivamente tentou se matar. Já foram tantas tentativas, que começo a perder a conta. Já foram tantas tentativas, que me questiono se em alguma das vezes ela realmente tinha a intenção de morrer ou se contava com a certeza de que seria impedida. Talvez nem ela tenha essa resposta.
No meio de tantas dúvidas, uma das poucas certezas é que as tentativas de suicídio continuarão acontecendo, chegando até mesmo a serem banalizadas por ela. Então, como se uma tentativa de suicídio fosse pouco, a cada vez surge mais um agravante capaz de tornar tudo ainda pior.
Para mim, cada vez é um apocalipse que me deixa destruída. Noto então que minha vida caminha para ser uma sucessão de apocalipses. Tentar se matar é a reação da minha filha a problemas que me fariam chorar ou gritar. O que para mim é um ato extremo e inadmissível, para ela parece corriqueiro.
O ideal seria que eu conseguisse seguir a maioria dos conselhos e me tornar imune a qualquer coisa que minha filha fale ou faça. Como se eu me tornasse uma parede, sem vida, sem sentimentos, que escuta e vê sem absorver nada. Seria mais tranquilo se eu conseguisse enxergá-la como alguém incapaz, um ser irracional que não tem consciência dos seus atos e suas consequências. Como o cachorrinho que eventualmente te machuca sem entender que está machucando. Mas ainda não consigo vê-la como alguém que sempre precisa ser café-com-leite.
Ciente das minhas limitações, começo a traçar metas que me parecem menos impossíveis: como acordar no dia seguinte de mais uma tentativa de suicídio da minha filha e tentar levar a vida normalmente? Como conciliar esse inferno com uma vida minimamente equilibrada? O que fazer para que tudo isso não me deixe com vontade de fugir da minha própria vida, já que esse problema vai continuar sendo parte da minha vida mesmo que eu me mude sozinha para o outro lado do mundo? Afinal, ela sempre vai ser minha filha, sempre vou carregar o título de mãe dela, mesmo que eu esteja longe, mesmo que em alguma das tentativas ela tenha sucesso.
Por pior que seja a perspectiva de continuidade das tentativas de suicídio, a única alternativa que enxergo é ainda mais dolorosa. Por mais que eu sonhe com um futuro em que esse pesadelo fique para trás e minha filha consiga alcançar minimamente um equilíbrio, sei que isso é somente uma utopia distante da minha realidade. Sendo assim, a cada ocorrência, só me resta desejar que essa não seja a última vez. Que seja só mais uma tentativa.
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