Pela metade – Revista Germina

Quanto mais te olho, mais os meus olhos parecem grudar em você. Quanto mais te olho, mais me lembro de tudo o que já foi feito e dito por nós. E essas lembranças juntam nostalgia com mágoa, amor e arrependimento. Dá vontade de reviver alguns momentos para poder consertar o que saiu errado… Então me pego pensando, se eu pudesse escolher um único momento do nosso passado para mudar, qual seria? Quando começamos a ser mais do que duas crianças brincando juntas? Quando nos afastamos e voltamos a agir como duas crianças? Ou será que eu conseguiria me livrar de tanto egoísmo para tentar me infiltrar no momento que te deixou aí, parado, sendo olhado e olhado e olhado por mim?

Pois é, meu irmão, fico olhando sua cara estática, com uma expressão neutra, e me pego lembrando do seu sorriso de menino. O sorriso daquela foto que nossa mãe tirou da gente brincando de playmobyl. Lembra daquele playmobyl azul, que veio com uma câmera de TV, que na nossa brincadeira sempre namorava a única playmobyl-mulher? Como era mesmo o nome que a gente tinha inventado para ele? Não lembro. Será que esse nome ainda existe dentro da sua cabeça? Será que eu ainda existo dentro da sua cabeça, ou os médicos bagunçaram tudo e me tiraram daí antes de dar os pontos? Eu devia ter pedido para eles tomarem cuidado com isso, porque se eles tiverem me tirado de dentro de você, me condenaram a viver pela metade. É assim que me sinto quando te olho aí parado: pela metade. E como é que eu posso sobreviver pela metade? Como é que posso voltar a sorrir pela metade, como uma vítima de derrame? Como é que nunca me preocupei em descobrir onde eu termino e onde você começa? Como é que a gente sempre deixou tudo continuar tão embolado? O que é que fui eu que senti e o que é que foi você que sentiu? E agora, que não sei mais se você ainda sente, por que é que me parece tão estranha a sensação de sentir sozinha?

Ando com medo de viver sem você, irmão. E como todas as vezes em que senti muito medo, minha primeira reação é pensar em te ligar. Só que agora não é possível. O máximo que consigo é escutar a sua voz na secretária eletrônica, repetindo sempre a mesma coisa. Oi, agora não posso atender, deixe seu recado depois do bip e eu retornarei assim que possível. Queria tanto te ouvir falando qualquer outra frase! Se você soubesse o que estava para acontecer, será que teria deixado uma gravação diferente para mim? Ou um bilhete? E teria assinado como o irmão que você sempre será, ou como o amante que você já foi? O que é que andava pela sua cabeça e que você se controlava para não me contar? Ah, se você soubesse tudo o que eu guardei dentro de mim em vez de te falar! E agora toda essa auto- repressão me parece ter sido em vão, porque eu me sentiria muito melhor agora se tivesse dito que te amava todas as vezes que tive vontade de fazer isso. Te amo e te quero. Por isso, fico pensando se você sabia disso mesmo depois que nos afastamos. Fico pensando se você também sentia vontade de me dizer a mesma coisa. Se você também especulava se eu sabia que você tinha essa vontade ou se eu achava que você nem pensava mais em mim.

Agora é tarde demais para essas perguntas que não foram feitas, mas eu respondo mesmo assim. Não, eu nunca achei que você não pensava mais em mim. Sempre soube que o nosso amor continuava existindo dentro de nós dois e não tinha se transformado em nenhum outro sentimento. Nem raiva, nem saudade, nem amizade. Continuou sendo amor, e só amor. E continua sendo amor, ainda que eu não saiba em que dimensão você está agora, nem se é possível amar nessa sua nova dimensão. Se não for possível, a gente inventa um jeito de continuar se amando mesmo assim. Porque amar não pode ser tão condenável quanto nos fizeram acreditar. Mas se você já tiver ido embora, como é que eu vou brigar pelo nosso amor sem você? Como é que eu aprendo a viver sem você?

Ando com medo de já estar vivendo sem você. Essa hipótese nunca existiu nem nos meus piores pesadelos, como é que pôde se aproximar da realidade numa velocidade tão rápida que eu nem percebi? Pisquei e quando abri os olhos de novo: paf, eu já estava vivendo esse pesadelo. Eu já estava sentada aqui, ao seu lado, irmão, escrevendo tudo o que eu gostaria de te dizer se você acordasse e desligasse todos esses aparelhos. Tudo o que eu devia ter te dito antes de o pesadelo começar. Porque agora, que o pesadelo já começou, me pego pensando que você pode virar uma estrela. E se isso acontecer, eu nunca mais vou conseguir olhar para o céu à noite sem lembrar que estou vivendo pela metade. Eu vou carregar um rancor tão grande por não te ter mais comigo, que vou torcer para ter céu nublado todas as noites. Porque se você não puder mais estar comigo, eu não vou querer mais olhar as estrelas e te imaginar tão longe quanto elas.

Será que esses médicos ainda deixaram alguma coisa aí dentro, ou essa conversa que está passando agora na minha cabeça nunca poderá virar realidade? Será que eu terei que guardar as nossas lembranças sozinha, de agora em diante? E se não couber tudo dentro de mim? Só as brincadeiras de playmobyl já ocupam um espaço tão grande, imagina o pacote completo? Lembra de quando a gente subiu naquela árvore e todo o mundo ficou procurando a gente? Lembra dos besouros verdes que comiam as frutas que caíam? Lembra de quando eu ganhei um pogo-ball? Quem foi mesmo que me deu? Lembra que eu nunca fui boa no jogo da memória? Lembra da última vez que a gente disse que se amava? Lembra do nosso passado como se fosse uma porção indivisível? Lembra do nosso filho que a gente tirou? Lembra de quando cedemos à pressão e voltamos a ser só irmãos, em vez de amantes? Lembra das promessas que a gente quebrou, dos planos que a gente não realizou? Lembra que foi impossível voltar a ser só irmãos e que a gente resolveu se afastar? Lembra de alguma coisa, ou não existem mais lembranças para você? Você ainda lembra, ou os médicos estão certos quando falam em morte cerebral e tentam me convencer a desligar os aparelhos? Responde a minha pergunta, nem que seja por telepatia, porque o prazo que o plano de saúde me deu está se esgotando e eu me sinto esgotar junto. Minha vida tem passado como se fosse areia escorrendo pela ampulheta, e cada vez sobra menos da minha areia na parte de cima.

Disponível em: https://www.germinaliteratura.com.br/marcia_do_valle.htm

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