Cinema Mudo – Escritoras Suicidas

Lucia estendia a roupa quando o marido chegou. Cheiro de cachaça na voz. Gritos e acusações nos olhos. Tapa na cara daquela mulher que estendia roupa, mas que Lucia sentia como se fosse outra pessoa, não ela mesma. Ela, Lucia, se encontrava passeando num jardim florido, olhando o azul do céu. Não, não era da boca dela que estava vindo aquele gosto de sangue. Não era o ouvido dela que estava zumbindo. Não era no corpo dela aquela dor latejando, nem era o vestido dela que estava sendo rasgado. Essa era a realidade daquela outra mulher, que ela assistia de longe. Olhava o marido abrir as calças como quem assiste um filme. Só faltava a pipoca. Contemplava a cena do estupro como uma espectadora que torce pela mocinha. A espectadora que chega a dar conselhos para a protagonista, mesmo sabendo que sua voz não chegará do outro lado da tela. Ah, minha filha, eu se fosse você já tinha largado esse homem. Mas nada daquela mulher escutar a voz de Lucia e colocar um ponto final. Nada daquela mulher obedecer aos conselhos de Lucia e desistir de revidar. Ela trancava e o outro arrombava. Ela vedava e o outro invadia. Ela imaculada e o outro contaminado. Ah, minha filha, não vê que ele é mais forte do que você? Não, aquela mulher não via isso. E por mais que Lucia repetisse para ela não resistir porque seria pior, mais ela resistia. E quando mais Lucia via a proximidade entre o marido e a faca da cozinha, mais a mulher se debatia. Ah, minha filha, deixa ele fazer o que já começou. É seu marido, tem direito. Mas não, a mulher se debateu até que Lucia viu a mão dele na faca. Até que Lucia viu a faca entrando no corpo daquela mulher. E por que é que seus dedos estavam ficando dormentes? Não, ela não estava dentro do filme. Não havia motivo para sentir a faca em seu corpo também. Não havia sentido em ter sua visão embaçada nem se engasgar com o gosto de sangue. Ah, minha filha, por que você não me escutou?

Disponível em: http://www.escritorassuicidas.com.br/edicao2_6.htm#marciadovalle

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